A construção da narrativa visual de uma capa de livro
- Hannah 23
- 10 de mai.
- 7 min de leitura
Jornada para o desenvolvimento da ilustração em colagem digital para a capa do livro Mimesis*, de Isabel Marz.

Primeiro a gente se conhece
O convite do Bando Editorial Favelofágico para fazer esta capa me deixou muito animada, e pra começar, a gente se apresenta. Levei alguns trabalhos em ilustração com colagem digital ("As Treze" e "E se fosse com você?") para falar sobre meu processo de trabalho e para explicar porque eu não faço layout para uma colagem digital.

Eu pesquiso, ouço, leio, ouço novamente, vejo referências. Tudo isso ANTES de começar a selecionar imagens.
Eu pesquiso, ouço, leio, ouço novamente, vejo referências. Tudo isso ANTES de começar a selecionar imagens. Quando vou para a seleção já eliminei algumas possibilidades e levo um campo (aberto) e outras formas de olhar para a pesquisa de imagens. Para colagens digitais, sempre pesquiso em banco de imagens gratuitas como Unsplash e Fortepan e sempre anoto todas as informações sobre autoria. Estas informações aparecem nos livros, na parte da ficha técnica.

Nunca deixe de anotar as informações referentes à autoria das imagens, é importante e fundamental para toda cadeia do livro.
Nunca deixe de anotar as informações referentes à autoria das imagens, é importante e fundamental para toda cadeia do livro. Normalmente uso bancos de imagens gratuitos porque não há verba extra para compra de imagens nos projetos que faço, e como os valores não me permitem absorver esse custo, trabalho com o possível.
Sobre o processo da capa de livro:
Depois ou durante a pesquisa, geralmente eu desenho um raff bem sem vergonha, para balizar onde gostaria de colocar cada coisa e estruturar a composição. Meu raff para esta colagem foi este aqui, feito em cima do gabarito.
Na fase de coletar coisas e informações eu solicitei um gabarito do livro (= arquivo demarcando o espaço de marcas, título, autor, logo da editora etc.), para que a colagem fosse desenvolvida sem atrapalhar o espaço de cada item necessário.

Esse rascunho me ajuda também a pensar e organizar como montar as narrativas. Isso demonstra respeito ao projeto gráfico (que neste caso era de uma coleção de livros) e ao trabalho do designer. Sendo também uma designer de livros, sei que um bom entrosamento entre ilustração e design pode ser a alavanca para um projeto bem sucedido.
Na minha forma de trabalhar com colagem digital, não tem layout porque, para mim, o layout (a imagem montada) já é a colagem. Por isso eu trabalho com um moodboard (você pode ver o moodboard ao final deste texto), onde apresento o tipo de imagem que vou usar (com havia representação de personagens, isso era fundamental) e o que eu chamo de universo visual de cada elemento. Neste livro temos 2 universos distintos: o mundo pobre e o mundo rico. E para fazer esta distinção escolhi um filme para cada um.
Os filmes de referência para a capa
Eu que nem gosto de cinema - um dia te conto melhor sobre isso- tive esse "trabalho" (pense numa cara sorrindo) de escolher (e assistir claro!) dois filmes, um para cada mundo. A escolha dos filmes deriva diretamente da descrição feita pela autora. O mundo rico é mundo liso, plástico, intocável e brilha. O mundo pobre tem ruínas, vegetação sobrevivendo ao concreto, musgo e abandono. Essa marcante diferença é ligada somente por uma estrada de ferro. Elemento que na capa, aparece no corpo da personagem principal e acima dela, como uma encruzilhada.
Para o mundo rico eu precisava de uma dimensão que trouxesse a informação de ficção científica (era uma distopia) e também me apresentasse a paleta que criaria um contraste bem marcante com o mundo pobre. E o filme escolhido foi Blade Runner 2049, de Denis Villeneuve e dentro do filme me interessa a parte cosmopolita, com seus neons em rosa e azul. Esse mundo é apresentando um ambiente neon, escuro e contrastante. Elementos como plástico e opulência são destacados, criando uma sensação de perfeição meio brega e atemporal.

Para o mundo pobre, escolhi o filme A Colina Escarlate, de Guilhermo Del Toro. A ambientação da casa, a paleta de cores que transitava entre ocres e verdes, já povoavam minha imaginação. Esse mundo pobre é caracterizado por abandono e negligência, com mofo e vegetação competindo por espaço. A vegetação, embora possa ser vista como um luxo, é apenas mais um elemento em um cenário de desilusão.

Personagens e representação na capa do livro
Tínhamos uma personagem principal que não tem nome e pela descrição é alguém sem simpatia. Ao mesmo tempo sua história me sugeria algo entre cínica, irônica e cansada. Já tinha tomado a decisão de trabalhar com fotografias de pessoas em PB, para contrastar com as cores de cada mundo. Existiam também outros personagens: uma colega de quarto, e as pessoas que a personagem principal substituía.
(Aqui vou precisar te passar uma curta sinopse do livro)
Era necessário sinalizar que o trabalho da protagonista era substituir pessoas, fingir, mas não de uma maneira perfeita, o processo era meio tosco, por isso a ligação entre ela e essas pessoas precisar parecer meio falsa, não natural. É nessa hora que entra a fita adesiva. O adesivo pode unir duas coisas, mas mesmo quando é transparente, ele é visível, porque é uma colagem que fica demarcada.


Aqui vale um adendo para a preocupação relevante de todos, sobre personagens secundários que, mesmo não sendo descritos em raça, precisavam expressar o mundo que queremos (me incluo aqui). Eram mulheres ricas, e já na pesquisa, houve a preocupação de escolher mulheres negras nesse papel. E para o astronauta, outro personagem importante (aí, você vai ter que ler o livro!) escolhemos um homem negro.
São detalhes, mas ao desenvolver uma imagem, tenho a consciência que estou construindo uma narrativa para a posteridade. Entender que tipo de narrativa você deseja expressar no mundo é fundamental para uma construção visual coerente com seu desejo de existência e congruência nessa vida.
(...) desenvolver uma imagem, tenho a consciência que estou construindo uma narrativa para a posteridade. Entender que tipo de narrativa você deseja expressar no mundo é fundamental para uma construção visual coerente com seu desejo de existência e congruência.
Moodboard aprovado, seguimos para a construção da imagem completa, sempre testando. Eu não sabia onde ia dar, mas depois da pesquisa e das trocas com o grupo, tinha uma ligeira ideia do que fazer e principalmente, do que não fazer.
Já tinha testado algumas possibilidades com as estradas de ferro, mas pensava como deveriam entrar pois eram a ligação. Sobre os mundos, eu já sabia que ia dividir a capa em duas partes e achei mais coerente colocar o mundo pobre ocupando além da capa a lombada e a 4a capa, já que é a morada da protagonista. Isso me sinalizou que precisava de mais material para ocupar estes espaços. E que delicia era pesquisar mundos em ruínas, sabia que tem fotógrafos com muito material de arquiteturas decadentes ? Meu preferido foi Peter Herman.

A fragmentação do mundo pobre veio a partir utilização de máscaras (feitas com pincel no photoshop) de meio tons (halftone) com elas eu "recortava" a imagem e sobrepunha sobre outras. A montagem era realizada "perfurando" com os pincéis halfotne as imagens, para deixar transparecer a imagem de baixo, até chegar numa composição que também fosse uma ruína da imagem original.


A sobreposição e o uso de camadas é algo que amo explorar, tanto nas colagens manuais quanto nas digitais.
Construí o mundo rico em um arquivo, usando diversos recursos aplicados em uma montagem de edifícios e molduras da pesquisa, para que trouxessem a sensação de um futuro neon, plástico e brilhante. Nem sei dizer quantos filtros usei, testava um em cima do outro até chegar no resultado final, que me agradou bastante, pois as imagens iniciais ficaram diluídas.
Com os fundos montados hora de acrescentar o elemento "estrada de ferro" e a protagonista, que como já foi dito não tinha nome e segui chamando-a de Ela. Tinha experimentado alguns testes com alto contraste em diversas fotos de estrada de ferro, busquei imagens que tivessem cruzamentos, porque gostaria de usar essa simbologia, cruzamento, encruzilhada, troca. Tinha uma imagem que ficou bem interessante que era exatamente esse cruzamento, mas os outros resultados eram tão bons que não quis descartar.

Fui testando junto com as imagens possíveis para Ela. chei mais prudente levar 2 opções de Ela, para nosso grupo escolher (grupo = coordenadora das publicações, designer, dono da editora, editora do livro e a autora). Então de todas as opções escolhi duas, que me dariam "espaço" para adicionar as outras faces e também tinham esse ar de pessoa não muito simpática (uma característica da personagem).


Em uma das imagens (a minha preferida, opção 1) a mulher tinha uma roupa bem anos 20, então pensei em "cobrir" a roupa e testei utilizar um dos alto contrastes de estrada de ferro, super funcionou. Aproveitei para testar a estrada de ferro encruzilhada em posições distintas. Foi unânime a opção 1.
O resultado foi este aqui.

a capa de um livro é um elemento visual importante que precisa chamar a atenção do futuro leitor, mas também deve dialogar com que está lendo ou mesmo já terminou a leitura.
Essa foi a minha jornada para a construção da narrativa visual de uma capa de livro. Compreendo que a capa de um livro é um elemento visual importante que precisa chamar a atenção do futuro leitor, mas também deve dialogar com que está lendo ou mesmo já terminou a leitura. Costumo deixar, em minhas ilustrações editoriais pequenos Easter eggs ( = Um Easter egg é um segredo ou uma surpresa escondida em um software, videogame, filme, série ou outro meio digital) para serem reconhecidos depois da leitura. E esta capa não foi diferente, está cheinha deles!
Veja aqui o moodboard apresentado no início do projeto e aqui embaixo a capa e lombada final do livro

Te agradeço pela leitura, agradeço se quiser compartilhar e voltar aqui também. Pretendo contar mais sobre processos de design que fiz ao longo destes 20 anos de trabalho. Até a próxima!
SERVIÇO
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*O livro é uma realização da V Residência Favelofágica, publicado pela Rubra editora. Coordenação editorial Mariane Martins, edição de Mic Paiva e design editorial de Bil Rait e Mariane Martins.
Adoro ver processos e sua apresentação, seu encaminhamento tiveram uma dosagem perfeita de didatismo e encantamento.